O texto de Cauê Alves, A curadoria como historicidade viva, integra o livro Sobre o ofício do curador, organizado
por Alexandre Dias Ramos, publicado pela editora Zouk, em 2010 e apresenta as
reflexões do curador sobre o circuito da curadoria, suas relações com o
patrimônio e espetáculo, bem como os sentidos do ofício do curador.
Para o professor Cauê, o curador de arte “ao pé da letra
seria aquele incumbido de cuidar, zelar e defender os interesses do artista e
dos trabalhos de arte (...) é o profissional que organiza, supervisiona ou
dirige exposições” (p.43). Entender a curadoria como inserida no campo coletivo
é discurso recorrente entre aqueles que exercem o ofício, como se percebe na
fala do curador Marconi Drumond, apresentada no documentário "O
que exatamente vocês fazem, quando fazem ou esperam fazer curadoria?" e explicitada no texto de Cauê Alves,
quando o autor escreve que qualquer exposição tendo um curador à frente
“é sempre fruto de um trabalho coletivo” (p.44).
Segundo Cauê Alves,
“espera-se da curadoria”, em sentido amplo do termo, “que saiba compreender e
relacionar o trabalho de arte, senão na história da arte, numa sequência de
outros trabalhos ou no contexto de uma discussão atual”, defendendo que “há
pouco ou nenhum sentido na curadoria e na crítica que não possui embasamento
histórico e teórico” (p. 44). Compreende, ainda, a curadoria como um campo interdisciplinar e
assinala que o curador “não é aquele que coloca em circulação o que apenas o
agrada, mas é um sujeito que pensa, estuda e reflete” (p. 45).
Outro ponto no ofício do curador destacado pelo autor - e
compartilhado por muitos profissionais de destaque no cenário da curadoria e
crítica de arte, como os curadores Gloria Ferreira e Paulo Herkenhoff que falam
no vídeo "O que exatamente vocês fazem, quando fazem ou esperam
fazer curadoria?" -
é a pesquisa e reflexão como fatores primordiais na atividade
curatorial. “A exposição é resultado de uma pesquisa e reflexão individual ou
coletiva” (p.45). Acrescenta que o “uso
público da reflexão pelo curador deve ter sentido que, indiretamente, esteja
ligado à história e à vida política” (p. 45).
Cauê Alves cita o conceito de instituição de
Merleau-Ponty para compreender o papel do curador “não como aquele sujeito que
constitui o mundo e dá sentido a ele e à arte, mas como o profissional cuja
ação pode ser instituíste no sentido que abre um acontecimento que está por vir
e assim possibilita uma série de outras experiências, que podem formar uma
história” (p.46).
Questiona a construção totalizadora da curadoria ao
afirmar que “assim como o museu não poderá expor a história da arte num sentido
objetivo de determinado, o curador não vai ter a visão definitiva de nenhum
trabalho” (p.46). Para ele, o que se espera de um curador é que ele “abra um
sentido possível no interior do trabalho de arte, de cada um exibido ou do
conjunto deles, e ao mesmo tempo, que dê espaço para que outros sentidos possam
surgir” (p.46). Essa também é a fala de Paulo Herkenhoff no vídeo O
que exatamente vocês fazem, quando fazem ou esperam fazer curadoria, quando propõe entender a
curadoria como um jogo do sensível com a obra de arte, mas sem perder a
perspectiva crítica.
Outro tópico no texto de Cauê Alves é o patrimônio e
espetáculo, onde ele questiona a mercantilização/espetacularização da arte, bem
como a ideia deturpada de determinados profissionais que pensam poder
encapsular o trabalho de arte. O autor diz que é função do curador “impedir a
petrificação de um trabalho de arte, seu congelamento” e que um curador que
adota uma “postura patrimonialista (...) acaba sendo mais nocivo do que o tempo
que corrói o trabalho”. Para ele, “não há sentido em preservar uma obra se a
experiência que ela poderia propiciar está impedida pelo modo como está
exposta” (p.48).
Ao abordar a espetacularização da arte, o autor fala que
o problema não é a arte ter se tornado espetáculo, “o problema está em como o
espetáculo é apresentado, produzido e divulgado” (p.49). O curador precisa
tomar cuidado para não se tornar, como também fala Paulo Herkenhoff, refém do
sistema ou do marketing institucional, pois “imersa na indústria cultural,
grande parte da arte passa a ser mais um entretenimento, um produto adaptado ao
consumo e descartado quase instantaneamente” (p.50). A atuação do curador nesse
modelo voltado ao consumo descartável tenderia a desacreditá-lo em sua função
social. É preciso equilíbrio nessa relação, posto que a arte é inesgotável.
Outra reflexão do professor Cauê é sobre arte e o tempo,
a compreensão do curador sobre essa relação. Para ele, “uma boa obra tem a
capacidade de nos dizer algo sobre o espírito de seu tempo de um modo muito
próprio e que não poderia ser dito de outra maneira” (p.52). No entanto, há que
se ter claro que “nenhuma obra dura eternamente: por mais discursiva que seja,
ela tem a sua materialidade como algo incontornável para a sua aparição” (p.
52).
Se por um lado técnicas e materiais de uma obra permitem
que historiadores possam datá-la, por outro, justamente é a técnica que permite
a sua criação, a exemplo da fotografia. Mas não é a tecnologia que definirá sua
atualidade ou que tornará um “trabalho de arte cidadão de seu próprio tempo”
(p.52). Para o autor, o fundamental, talvez, “seja o modo como ele se instaura
no mundo”. É preciso compreender que “cada instante traz consigo o momento que
o precede e o sucede” (p.53). “(...) Assim infiltrada no tempo, cada obra de
arte carrega seu próprio devir e porvir (...) e, em vez de reproduzir o tempo,
ela o reinventa para que ele continue transcorrendo e para que ela não cesse de
desafiá-lo” (p.53).
Ao tratar sobre curadoria e sentido, o autor distingue o
trabalho do curador e do crítico da do artista. Diz ele que “se o curador e o
crítico são aqueles que escrevem e elaboram seu pensamento pela linguagem e
pela montagem da exposição, tentando desvelar os sentidos que exalam do trabalho,
a arte, ao contrário pode se beneficiar do silêncio” (p.54).
È função do trabalho do curador identificar
“metamorfoses, transformações entre trabalhos que talvez pudessem ser negados
pelos próprios artistas” (p.55). Essa percepção não é pretensão do curador em
nivelar trabalhos ou reduzir os seus sentidos, “mas os amplia, mostrando o que
há de indeterminado na arte pode, a partir de uma contingência, se tornar
possível e dotado de sentido” (p.55). Mas o autor chama atenção para o fato de
que “ o trabalho de arte não é aquilo que está á espera de um sentido que lhe
será atribuído ou de um valor definitivo que o curador poderá lhe conferir
(...)” (p.56).
A atividade de curadoria, tratada por Cauê Alves, como
historicidade viva propõe a não redução do trabalho de arte a “um argumento ou
um discurso sobre o passado e sim o oposto, é o discurso da curadoria que
precisa se instalar no interior da obra e em sua relação com o público para
abrir um futuro” (p.56). Um delicado equilíbrio que exige reflexão no ofício do
curador.
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